quinta-feira, julho 20, 2006

A Antígona Discográfica

Um pequeno manifesto humorístico a favor do download de músicas que me mostraram recentemente levou-me a reflectir de novo na legitimidade ou não do acto. Note-se que não me questiono aqui a um nível jurídico - para além de não ter os conhecimentos a isso necessários, é-me de todo irrelevante. Questiono antes a um nível moral, tanto mais que esta é um problema que, a nós, artistas (ainda que os membros deste blogue não se movam exactamente no mesmo campo que aqueles a quem este artigo maioritariamente se refere), nos preocupa, por maioria de razão.
As editoras discográficas argumentam que a prática do download lesa pesadamente os artistas. Até que ponto é esta afirmação verdadeira? Até que ponto não são as próprias editoras que usam aqui os artistas como escudo humano, como bode expiatório salvador (guarde-se o paradoxo)? Pouca é, na realidade, a percentagem de lucros que o artista recebe - muito mais o músico ganha (e daí vem a sua riqueza e sustento) com os concertos. Ora, a própria classe de músicos reconhece unanimemente que a internet (aqui como sinédoque do download) faz mais pela sua divulgação do que qualquer outro meio - logo, mais fãs afluem aos concertos, ergo, mais dinheiro entra directamente para os fundos dos artistas.
A verdade é que comprar um CD é um acto arriscado, caso já não se tenha uma relação de confiança com a banda. Não se trata do custo do CD em si ser particularmente elevado - o que, no entanto, é facto para as carteiras normais dos concumidores-alvo: os adolescentes e jovens adultos. (Apesar destes preços, somos forçados a concordar quando as editoras afirmam que é um preço baixo para um investimento para toda a vida e que podemos reouvir vezes inúmeras). Porém, ninguém se arrisca a comprar um álbum dum artista que desconhece, correndo o risco de fazer um investimento errado - daí preferirem, tantas vezes, tirar da rede e, depois, compram os novos álbuns do artista - porque, não nos iludamos: imensos consumidores compram mais CDs porque começaram a tirar música da rede e a conhecer artistas, do que se não o fizessem - simplesmente compram-nos, muitas mais vezes, em promoções ou feiras do disco.
A indústia cinematográfica é, no ponto específico do desconhecimento do produto, bem superior, devido à sua rede de cinemas: conseguimos, por um preço diminuto, ver o filme antes de ele sair em DVD, permitindo-nos assim, mediante a nossa reacção pessoal ao seu visionamento, optar por, posteriormente, o comprar ou não - porque já o vimos, por um custo baixo. Porém, isso é impossível na indústria discográfica - e não, não bastam os singles: quantos one-hit-artists não existem? A criação de postos ou dum qualquer serviço onde fosse possível, como cinema-musical, antecipadamente, ouvir os discos, por um preço reduzido, um musicoclube, se quisessem, poderia favorecer a compra directa de CDs.
Podem-me dizer que esta argumentação cai por terra tendo em conta que quando se saca música é simplesmente para não gastar dinheiro - não é com a intenção de, posteriormente, se agradar, comprar. É preciso tomar em conta que o bom fã vai-se esforçar por ter o álbum original, regra geral - e que poucas são as pessoas que, de facto, não compram qualquer CD ou não têm originais, ou porque neles investiram, ou porque lhos ofereceram nos anos ou outras festividades. E se quem sacar tiver alguma consciência, investirá nos pequenos artistas, aqueles precisamente mais necessitados.
Ou seja, podemos identificar um conjunto de problemas que, em parte, garantem a legitimidade moral daquele que descarrega músicas da net, conquanto o faça com consciência e sem, por exemplo, objectivo de posteriormente as comercializar no mercado negro. Assim, Antígonas, ignoramos o regulamento de Creonte das editoras, não obstante o castigo - e não nos importamos.

sábado, julho 15, 2006

Prometeu & Lúcifer

O presente texto é uma reformulação parcial de um que originalmente escrevi, de rompante, no meu próprio blogue - tal circunstância julgo explicar alguma fogosidade e informalidade que se despreende das palavras. Porque brotou de uma corrente de pensamentos, alguns corrige e emenda à medida que se desenvolve. Para o Ars Scientia limei algumas arestas, de raciocínio e gramática: aceitam-se, bem desejadas, críticas.
Cita Nietzsche Goethe, a sua obra Prometeu:
Sentado aqui, eis que modelo homens
À minha imagem
Uma raça que me seja comparável,
Para sofrer e chorar,
Para gozar e jubilar,
E para não te venerar,
Como eu!
Eis que, em lendo, na aula, estas palavras, tudo, como iluminação, se me revelou - como eu mesmo, prometeu, roubara o fogo que algum deus olímpico escondera: uma série de encadeamentos de conceitos e noções, até à associação final da imagem.

Nestes versos do Poeta, aparece-nos um Prometeu que, primeiramente, se caracteriza pela revolta; segundo, pelo acto demiúrgico; terceiro, a ideia do sofrimento. Ante isto, é impossível não ocorrer à mente, correndo, a ideia de Lucífer. Lúcifer é, pela tradição, o anjo caído, que se revolta contra Deus, que resvala, ele mesmo, para o sofrimento (por isso - interpretando o poema citado - cria também os seres humanos "para sofrer", "à minha [sua] imagem") derivado da separação de Deus e do Uno Primordial (não se leia o termo nietzschianamente) - hoje em dia, na própria teologia cristã, o Inferno é indicado já não como um local, mas sim como o estado de separação do sujeito de Deus: exactamente a circunstância luciferina. Note-se, mais aterrador, a semelhança entre Lúcifer, literalmente, o que leva a luz (lux[luz]+ferre[levar, transportar]), e Prometeu, que roubou a luz (o fogo). A própria linguagem nos parece claramente indicar uma estranha ligação entre as duas personagens.

Naturalmente, o imaginário cristão jamais poderia comportar a ideia de uma criação não divina, mas diabólica, isto é, que tudo o que existe não tenha sido criado por Deus, como afirma o Génesis. As primeiríssimas heresias cristãs, que afirmavam a matéria como mal, pareciam defender, implicita ou inconscientemente, que, a matéria, enquanto algo de claramente negativo, não podia ter a origem num ser bondoso, Deus, mas num deus menor, num demiurgo, num diabo, que, malvado, criara a matéria malvada. Não existia forma de compatibilizar as ideias, contraditórias, de Deus como criador de tudo e da matéria como algo negativo, mau. Obviamente, para suprir este dilema, o cristianismo ultrapassou esta dialéctica platónica que parece ter sido seu apanágio durante a Idade Média.

Obviamente, aquando do aparecimento da figura de Prometeu na mitologia grega este dualismo platónico estava totalmente ausente, pelo que a criação do homem em matéria (e espírito: recordemos, de novo, que não se falava ainda no maniqueísmo que Platão mais tarde introduziria ao falar de um Hiperurano onde os seres humanos existem somente enquanto almas) não é considerado um acto mau, nem, note-se, ainda sequer um acto de rebaldia (como o pretende fazer Goethe). De acordo com o mito, Prometeu e o seu irmão titã criaram os seres vivos (Prometeu somente o Homem, sozinho) sob autorização de Zeus, para povoarem a terra. Nem, sequer, podemos declamar o verso de Goethe "E para te não venerar", já que, diz a tradição mítica helénica, foi Prometeu que ensinou aos homens o dever do sacrifício para com os deuses e das libações que lhes deviam. Sabendo nós que Goethe não era, de forma alguma, um ignorante nestas matérias clássicas, só podemos entender o por ele escrito como uma deliberada tentativa de associação da figura de Prometeu à de Lúcifer, no conceito de um caído e rebelado, e mesmo à ideia do Demiurgo, no sentido em que Prometeu cria.

Se o termo demiurgo contém uma carga negativa latente, um desprezo óbvio, quer por parte de Platão quer por parte dos gnósticos, que dele bebem, ele aqui surge totalmente retransfigurado, no cimo do monte tabor, ladeado do seu elias e do seu moisés: e nós, na sua contemplação, pedros, contruamos três tendas. Aqui o desprezível Demiurgo torna-se no resplendoroso Prometeu. O acto criador do velho Demiurgo, antes ele e o seu acto achados baixos, menores e maus, são agora subidos a toda uma nova categoria quando abandonamos essa terminologia satírica para com eles para falarmos da imagem helénica de Prometeu. Quem olha desprezivelmente para Prometeu? Ele é o deus menor ainda, nem deus é, é titã, o grosseiro titã, comentarão os deus olímpicos dos seus tronos de esmeraldas, mas ele é, a nós, homens, seus filhos, o pai, o criador: ele nos deu plena existência. Não achamos mais um deus menor que emprisionou os nossos espíritos, antes livres no etéreo, na matéria, achamos sim, há semelhança do Deus cristão, um criador que nos cria, pela primeira vez, inteiros, matéria e espírito (anima, em latim, aquilo que anima, ou seja, dá vida, literalmente).

Assim, Goethe opera esse milagre, naqueles versos citados por Nietzsche, de fundir, simultaneamente, as figuras de Lúcifer (no sentido da revolta) e Deus (no sentido da criação), nesse híbrido que é Prometeu. Prometeu, desde o início, elevou os homens à condição de Deus, dando-lhes o saber (do qual o fogo, em última análise, mais não é que, enquanto luz (Iluminismo), uma metáfora), o que incendiu tanto a ira de Zeus. Aqui, vemos, obviamente paralelismos bíblicos, com a Árvore do Conhecimento que Deus proibiu Eva e Adão de comerem. Mas a Serpente-Lúcifer-Prometeu dá a maçã aos homens, trazendo-lhes o conhecimento, o qual, inevitavelmente, traz sofrimento, quer ao tentador, quer aos tentados. É isso que nos diz não só o relato do Génesis, mas também o mito grego, quando, por um lado, Prometeu é agrilhoado no Cáucaso, por outro, Pandora desce à terra com os males do mundo e os liberta, punindo a nossa raça. Uma outra vez, reforça-se a ligação Lúcifer-Prometeu.

Parecemos ter aqui a confirmação da sabedoria profunda de Nietzsche, que escrevia, pouco antes de citar estes versos, "aquele que decifrar o enigma da natureza [...] há-de [...] violar as sagradas leis da moral." ou ainda "lança da sabedoria volta-se contra o sábio: a sabedoria é um crime contra a natureza". A inconsciência, no sentido de não saber, seria o estado primitivo (por isso Uno Primordial) de Eva e Adão (em metáfora de todos os homens) até Lúcifer-Prometeu os tentar. É deste Uno Primordial em que tudo é paz, porque inconsciência ("Ignorance is bliss" - Cypher, Matrix) (que é a ingenuidade, a tão louvada ingenuidade, mais do que um não saber?), que Lúcifer-Prometeu quer arrancar os homens. Diz o mito que Zeus não concordava com o que Prometeu fazia aos homens, que ele [Prometeu] via como superiores a todos os restantes animais, achando [Zeus] que os homens deviam ser semelhantes às bestas. A sabedoria surge como uma ofensa aos deuses. Na ignorância se moviam a pré-Pirra e o pré-Deucalião (sem nomes na lenda) até Lúcifer-Prometeu lhes dar a luz (fogo), ele que, é, por Lúcifer, o que leva a luz, por Prometeu, o que vê mais longe. Note-se, na etimologia de Prometeu, o verbo ver: saber é ver, ver implica, enquanto fenómeno físico, necessariamente, a luz. Esta é a sabedoria maior, a de o ver longe, ou profecia. Pela profecia, Prometeu foi salvo: Zeus não podia dispensar saber quem seria aquele que o destronaria: preso ao poder, prendeu à rocha aquele que doutro modo mataria. Prometeu ensinou os homens, diz o mito, a estudar os astros e sabemos como nesse tempo que era o da Antiguidade, astronomia era equivalente de astrologia, e que outro intuito tem esta senão conhecer o que está para vir?

Se a sabedoria é, como vimos, uma ameça aos deuses, como não o pode ser mais a profecia, o conhecimento do próprio destino? Os seres humanos humanos ameaçavam saber tanto como os deuses, ser tão poderosos como os deuses - e, então, que poder teriam os deuses? Obviamente, entende-se a preocupação destes. Os deuses constituem-se assim como uma espécie que existe apenas em função da conservação e execução do poder. (Um comunista podia ler aqui uma bela metáfora contra o capitalismo - pobres gregos que não sonhavem estes marxistas aproveitamentos!). O que Prometeu vem, proletário revolucionário, fazer é incentivar os homens a rebelarem-se, à semelhança de como ele se rebelou contra Zeus. Rebelado, ele pode ser mais infeliz, mais miserável, porque perdeu a benesse da paz e felicidade primordiais, que só se atingem na inconsciência, no nirvana budista, mas, em contrapartida, tornou-se livre, e a sua liberdade conquistada, não a cede por nada. Fora da mansão do seu senhor, o escravo não tem o pão que, todos os dias, o mestre lhe assegurava na mesa, não tem a água pura que o dominador lhe servia, mas é livre! E a única coisa pela qual pode ceder a sua liberdade (que antes dissémos não ceder jamais) é pela concessão de liberdade aos outros. Assim se entende que Prometeu, aquele que prevê, porque prevê, sabendo, a priori, do seu castigo, tenha, mesmo assim, roubado o fogo: a única coisa pela qual a liberdade é passível de ser cedida é pela própria liberdade. E, pelo fogo, Prometeu concretizou a libertação dos humanos dos deuses. Prometeu, foi, num certo sentido, o primeiro anarquista. Dizia Bakunine que "Se Deus existisse realmente, seria necessário fazê-lo desaparecer". Prometeu e Bakunine partilham a visão de um Deus que apenas procura preservar o seu poder (o que, implica, necessariamente, alguém que se submeta a esse mesmo poder e pelo qual esse poder se possa exprimir, em lhe [ao poder] obedecendo). Ante esta escravatura, os dois apelam à libertação do homem. Lúcifer, esse, procura libertar o ser humano da prisão da sua ignorância, que é inclusive a ignorância da sua prisão.

Algo, porém, ao leitor atento, parece falhar neste edifício. E, ai!, que até a mim me intrigava! Mas, como quando se escreve, tudo se desentreva, assim, em quanto me explanava em buscas de sentidos, achei-o. Sim, certo, o mito é claro nesse aspecto: depois de roubar o fogo do Olimpo, do carro de Hélio, Prometeu aconselhou os homens, que faziam fogueiras para aquecerem os alimentos e os corpos, a, para aplacar a ira de Zeus que ele previa, que lhe oferecessem um sacríficio (aqui a introdução do sacrifício, antes mencionada e atribuída ao titã). Para isso, matou-se um boi. Mas, eis companheiros, "brothers, your humble narrator" acercou-se da lenda e entendeu, enfim, o seu pormenor que não deslindava. Concentremo-nos no futuro do boi. Prometeu didiviu os restos do boi em duas partes, que envolveu em pele. A porção maior continha apenas gordura e ossos; a mais pequena repletava-se de boa carne. (há outras versões do mito, que o narram diferentemente, mas, tratam-se de pormenores ou divergências que, na medida das várias versões por nós conhecidas, em nada afectam as conclusões tiradas antes). Prometeu, ante Zeus, disse ter reservado a menor para os deuses, mas o pai do Olimpo indignou-se. Matreiro, como um Loki nórdico, Prometeu deixou, com um sorriso, Zeus escolher que porção queria e, obviamente, o guloso escolheu a maior - só para perceber como fora ludibriado. Note-se, pois, que Prometeu tudo isto fez para enganar os deuses - há aqui um sarcasmo, um desprezo. Ele introduziu o sacrifício, concordo: mas com o único intuito de ridicularizar Zeus. Por isso, o próprio sacrifício, na forma em que Prometeu o introduz, tornar-se um acto de revolta contra os deuses, não de subserviência. Goethe escrevia afinal bem quando nos deixou o verso "E para te não venerar, /Como eu!".

Uma última questão prende-se com a criação dos seres humanos por Prometeu-Lucífer, apenas aflorada anteriormente. Lúcifer é aqui equiparado ao Demiurgo gnóstico só no sentido em que, não sendo o verdadeiro Deus, é um criador também. Segundo um os Três Livros de Enoque, bisavô de Moisés, (estes livros, não pertencendo ao cânon, foram citados e reconhecidos como inspirados por vários Pais da Igreja), Deus escolhera um grupo de anjos específicos (os quais, posteriormente, cairiam) para auxiliar na construção do Éden. A narrativa descreve como se apaixonaram pelas mulheres e lhes geraram prole, razão pela qual, segundo o autor teriam sido expulsos. Esta visão que muitos tardariam a qualificar de apócrifa está, na realidade, bastante bem documentada no Génesis. Passamos a citar o início do sexto capítulo do primeiro do Pentateuco: "Quando a humanidade começou a ser mais numerosa na terra e foram nascendo mais raparigas, os seres celestes viram que estas eram belas e cada um deles escolheu para sua mulher aquela que mais lhe agradou. [...] Havia então na terra os gigantes e continuaram depois a existir. É que os seres celestes tinham casado com as filhas dos homens e tinham gerado filhos. Foram estes os famosos heróis dos tempos antigos." (Gn, 6, 1-4). Porém, não nos interessa especificamente este relato e só o transcrevi para maior credibilidade dar aos Três Livros de Enoque. O que estes nos revelam de importante é a intervenção directa dos anjos na criação do mundo. O texto, obviamente, não assume a possibilidade que não tenha sido Deus a criar a raça humana, mas involve directamente os caídos na feitura do mundo. Também Prometeu, como referido, cria os homens sob ordens de Zeus (ainda que este solicitasse apenas criaturas, sem especificar, para popular a terra). Se estamos perante um anjo-titã que se revolta contra a autoridade, como entender este acatamento de ordens da mesma autoridade? A tradição (do mito e do cristianismo) remete, frequentemente, a queda para depois da criação do ser humano, pelo que, sem embargo, podemos reconhecer Prometeu coerente, o mesmo Prometeu que, anteriormente, se associara mesmo a Zeus para destronar os outros titãs. Contudo, se tudo isto aqui explanamos, é numa tentativa de remeter sentido ao verso "eis que modelo homens", na tentativa de ligar mais prontamente Prometeu e Lúcifer. Para tal, tínhamos antes feito equivaler Lúcifer, na coisa de criar, ao Demiurgo gnóstico. Porém, a ligação das duas imagens que fazemos é relativamente vaga, pelo que seria mais acertado o associarmos ao binómio gnóstico Sophia/Demiurgo, que sabemos [este último] ser uma emanação de Sophia, a qual, por sua vez, era a emanação mais fraca de Deus. Lúcifer comporta esta dupla divindade: é Sophia enquanto portador de sabedoria, e é Demiurgo enquanto criador do mundo. Porém, não nos coibimos de concordar que é forçado unir, neste ponto específico, as imagens de Prometeu e Lúcifer, se não concedermos em não aceitar a versão de Goethe e do mito na sua versão mais conhecida, de que Prometeu criou, de facto, os seres humanos. Porém, ainda que este assunto seja portador de grande relevância, se aqui o tratamos foi por razões de honestidade e clarificação. Ele, na teologia nova do saber que aqui abordamos, no âmbito só em que Nietzsche a usa, mantém, independentemente da sua resolução correcta, inalteráveis e válidas as assumpções anteriormente feitas em matéria de conhecimento (fogo/luz) trazido pelo Prometeu-Lúcifer.

Estamos aptos a sintetizar então toda uma teologia alternativa: no começo, era o que chamámos de Uno Primordial: um descanso pacífico infinito de Deus/Zeus e das Suas criações. Nele, uma dessas criações (Prometeu-Lúcifer) revolta-se, ao despertar desse Uno Primordial, entendendo, enquanto criação, o seu estado de submissão ao poder instituído (Deus/Zeus). [?Cria as suas próprias criaturas: e, nesse, e apenas nesse, sentido de que cria sem que que seja a Entidade Máxima, é demiurgo.?] Aos homens ensina. Os deuses (Deus/Zeus) reagem negativamente à escalada de conhecimentos das criaturas que antes, no Uno Primordial, porque ignorantes, se lhes submetiam, sendo felizes. Com o conhecimento dissolve-se a ignorância, com ela a subserviência. Os homens escalam ao estatuto de deuses e dispensam-nos, gozando das libações que lhes prestam. Como castigo, o seu libertador (Prometeu-Lúcifer) é condenado, bem como eles mesmos. Os poderes (Deus/Zeus) surgem, pois, como vingativos, sendentos de poder, e Prometeu-Lúcifer como o salvador da Liberdade pela Sabedoria: a gnose, com a ascenção à condição igual dos deuses, e a queda necessária de belerofonte que isso implica.