quarta-feira, setembro 13, 2006

M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte III]

Centremo-nos, agora, nisto: as fogueiras provocam as sombras - os intermediários provocam os fenómenos. Estabeleço pois: é necessário queimar as fogueiras! Chegou o tempo em que o escritor fala ao leitor, o realizador vê o espectador, o músico ouve o fã. E o instrumento da libertação tem o nome de: internet. E a libertação chama-se: gratuidade. Do céu caiu uma estrela: ela é o sinal! Na literatura, os blogues permitiram uma inédita proximidade entre os dois lados da barricada, construindo-se tantas vezes como complemento ao próprio livro; a possibilidade da criação simples de e-zines favoreceu a divulgação de grupos menores antes sem meio de expressão. Em cinema, tivémos já este ano o vanguardista exemplo de Soderbergh com Bubbles, lançado simultaneamente nas salas, na televisão e em DVD; bem como o case study do recentíssimo Snakes On A Plane em que a produtora, sob pressão dos fãs na net, se viu obrigada a filmar novas cenas. Musicalmente, os selos, apocalipticamente, abertos abriram abertamente o futuro: a Universal passará a distribuir as suas músicas gratuitamente já pelo final do ano; as netlabels são uma realidade emergente; os Artic Monkeys são a prova de que a Rede funciona como plataforma de lançamento de novos artistas; na Suécia, domingo saberemos os resultados eleitorais do Piratpartiet. No Canadá, no ano passado, um projecto de lei que visava criminalizar os downloads foi reprovado (de resto, mesmo em Portugal só o upload é estritamente punível) - em contrapartida, parte do preço dos CD-Rs reverte a favor dos artistas e editoras discográficas. Pedro Leitão, responsável pela TestTube, profeta khalil gibran, anunciou:

"Há quem diga que o download gratuito é um roubo. Mas o download não é gratuito, visto que implica um pagamento ao ISP que fornece o acesso à Net. Deviam ser os ISP a pagar ás editoras pelos downloads, á semelhança do que rádios e discotecas já fazem com as taxas dos direitos de autor. Um dia, a música será um bem fluido, pago por uma conta mensal, como a luz ou a água."

Estes, irmãos, são os sinais dos tempos.

Mas até que ponto estamos nós, artistas, prontos a acompanhar esta mudança? O mercado musical é aquele que, a uma primeira análise, mais facilmente - também porque nele mais rapidamente a viragem para o futuro se processa, por ser a arte maior - se adaptará e salvaguardará os interesses dos seus artistas. Afamados cantores já foram prontos, há muito, a esclarecer que não se opõem ao download. Vimos já anteriormente que, verdadeiramente, quem beneficia do sistema actual de venda de CDs são as editoras, pois nem mesmo na rica América a margem de lucro para os compositores chega a atingir os 10% sobre o preço de capa. Estabelecemos já que o sustento dos músicos são as suas tours e um sistema como o proposto por Pedro Leitão ou a forma como, pela publicidade, a Universal vai continuar a lucrar, asseguram a permanência de outros rendimentos menores extras. Com o tempo, sonho!, nesse tempo de fraternidade que virá, emergirão mesmo estúdios gratuitos, construídos pelo dinheiro de várias bandas reunidas que abrirão as portas destes aos novos, dispensando-lhes material, como quem convida para ser o supporting act de uma tournée - e a música florescerá, como uma magnólia - porque branca de pureza.

No cinema, como pode um realizador actuar neste novo espaço e novo tempo (a quarta dimensão) sem intermediários? O filme é, indubitavelmente, das três artes que vimos falando, a que mais meios envolve, mesmo quando o seu orçamento é nitidamente baixo, também porque, evidentemente, é a que emprega mais pessoas. No dia em que o dinheiro se extinguir, há uma aurora boreal que anunciará a dissolução dos problemas que falamos - e Tyler Durden sorrirá. Hoje, permanece, estátua, a necessidade de alimento. Aos cineastas, como músicos em tournées, resta receber dividendos da exibição pública das metragens antecipadamente. Duas perguntas: 1) como, se os cinemas não são controlados pelos cineastas? 2) como, se a ida sociológica ao cinema está em queda? Obviamente, o sonho pressupõe o sonho. Se Coppola e Lucas fizeram a Zoetrope, se Von Trier concebeu Zentropa, se Spielberg criou a Dreamworks, eis chegada a hora de os realizadores, além das suas produtoras, formarem as suas salas, assegurando pessoalmente e directamente a distribuição dos filmes e recolhendo os lucros da exibição. E como um dia os estúdios serão dos músicos, assim virá aurora em que lusomundos serão dos cineastas. Mau grado a crise do ano passado, público continuará a afluir ao cinema, porque o grande ecrã é a essenciabilidade da sétima arte. Um 5.1. dollby surround não substitui um josé lúcio leiriense. Há sempre uma razão para ir ao cinema - mas é preciso também que fabriquemos essa razão. Experiências como o IMAX ou o Optimus Open-Air são pioneiras nesse campo nos tempos nossos, mas que falar do Napoléon de Abel Gance em 1927 ou os drive-ins doutrora? Adicionalmente, outra possibilidade, secundária, de financiamento dos artistas da área é o mecenato dos espectadores. Leiam-se, de novo, astrologicamente, os signos:

"We now live in an era where a blogger like Josh Ellis could ask his readers to pay him$500 so he could travel to Nevada and write an essay about his trip to the origins of the Manhattan project or where Daniel at PouringDown.tv could raise over $2000 from dozens of readers via Fundable.org to go and make a film a day on a week long road trip for the Seven Maps project."

Certos dirão que isto se traduziria, redundantemente, na não gratuidade dos filmes. Mas estamos perante uma falácia, porque obviamente o espectador nunca financiará todos os filmes que consumirá. Outro projectos gratuitos angariam também eles: nomeadamente a Wikipedia. Outros afirmarão que os realizadores se libertarão da escravatura da indústria só para resvalarem para a do público: o realizador, em vez de ter de convencer um estúdio, terá de convencer o seu público - o que é sempre a prova derradeira, agora tornada primeira. E o público não pode nem deve ser um problema - um filme, como veículo de uma mensagem, de uma weltanschauung, precisa de um interlocutor - cujo nome é: Público. Mesmo uma visão muito pessoal, necessariamente pouco apelativa às massas, encontrará nelas, quando elevadas cultas, suporte. E o cinema brotará como um rio - porque nasce nas montanhas, chamadas: Alturas, e desce ao mundo, regando.

Por fim, escritores que somos nós, como nos vestimos de festa para a celebração? O material mais precariamente protegido, mais propenso ao plágio, é, indiscutivelmente, o nosso. Possuímos, frutuitamente, mecanismos e organismos que asseguram os nosso direitos morais sobre as obras, conquanto as registemos. Verdadeiramente, muitos, pouco passam deste estádio. As editoras, protectoras, consentem, em matérias invisíveis como a poesia, na publicação se os lucros respeitantes ao autor revertem para elas até que os custos de publicação estejam cobertos. Tendo em conta que o lançamento de poesia em Portugal é, praticamente sempre, um investimento não recuperado, nunca poeta algum ganharia pão com a sua poesia senão em utopia. Assim, ao poeta colocam-se, francamente, poucas dúvidas, pela prática, de gratuidade da sua poesia. A publicação é perseguida pelo formato palpável de livro que permite - e é a dificuldade de extinção deste que condiciona, na literatura, o objectivo comum para Arte que aqui temos prosseguido. Se a música percorreu diversos formatos, do saudoso vinil ao impalpável mp3; se o cinema coube primeiro em película e hoje é digital, foi primeiro bobina, sofreu a metamorfose de ser VHS e acabou, mariposa, em DVD só para, insecto, se extinguir breve e das duas asas chamar-lhes, à esquerda, HD-DVD, e à direita, Blu-ray; o livro, esse, inalterável, ficou gutenberg desde o (re)nascimento. É pois complicado conceber o livro num formato alheio ao papel, livro cibernético e informático em plenitude. E isto condiciona a situação do escritor na nova distribuição da Arte: por um lado, é desconhecido qualquer meio de rendimento consistente de um escritor a tempo inteiro que não as suas obras (não há, como no cinema, salas; como na música, tours); por outro, o papel terá de ser sempre pago, inclusive por razões ecológicas. Uma reflexão pertinente aflora, contudo: raros são, excepto velhos, os só-escritores. A escrita tem por característica ser sempre uma actividade secundária longamente. Não se ouve falar de músicos, mesmo entre os menos conhecidos, que, após o lançamento do seu primeiro álbum, permaneçam no activo numa qualquer profissão de secretária. Paralelamente se comportam os cineastas, intercalando entre longas-metragens, videoclips e anúncios publicitários. A condição da escrita é, ipso facto, árdua. Excepcionando traduções, ninguém pode viver de se sentar ao computador. Mais uma vez, o escritor aparece, dentre as três artes que, sistematicamente, temos vindo a analisar, como o mais propenso a mais facilmente ceder à gratuidade, por o seu estado ser, de facto, bastante semelhante já a esse, de resto. Publicar um livro é muito mais a necessidade de uma concretização da natureza e modo e forma da escrita do que um verdadeiro lucro. É a condensação de um desejo que brota do interior do escritor, como o é do realizador ver o seu filme numa sala ou do música de uma audiência a cantar along. A primeira solução ponderada então é, como o Bubbles do cinema, o duplo lançamento da obra: simultaneamente a nível cibernético e editorial/livreiro. Isto materializaria o livro sem ofender a gratuidade que buscamos da Arte. Se o terreno cibernáutico é, nalguns formatos, mais favorável, o rígido papel permitirá a muitos a concretização mais fiel dos intentos. Uma taxação, como os canadianos nos CD-Rs, das folhas de papel (necessariamente requeridas para impressão dos textos online) poderia acalmar os objeccionistas da primeira medida. Creio, sinceramente, na possibilidade fáctica desta nova literatura, capaz até de explorar, modernisticamente (isto é, em jeito dos primeiros modernistas), as potencialidades do ciberespaço e as incluir na sua própria estrutura. E a literatura será como a semente da mostarda - "é a mais pequena de todas as sementes; mas, depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos."

Mais: até, amigos!, nesta luta, legalmente os juízes e os juízos nos compreendem e ajudam! Progressivamente, pela lenta dissolução dos direitos de autor, para a ribalta saltam livros, filmes, músicas! Na altura em que, beatles feitos, cantarmos "when i'm sixty-four", poderemos ver gratuitamente um filme de Kubrick, ler um romance de Vergílio Ferreira ou ouvir Nirvana. Mas nessa altura, de resto, professo firmemente a minha fé, ter-se-á cumprido o sonho do primeiro e último filósofo português, Agostinho da Silva, que anunciou, franciscanamente, o tempo da liberdade da arte.
E ser artista será, de novo, desregração.
E a Arte: acontecerá!

6.9.2006-13.9.2006

M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte II]

Houve, de facto, um tempo, em que cri que a Arte era um privilégio de elites abençoadas, estranhamente iluminadas - e que, jamais o «povo» haveria de ascender a percebê-la. Que engano!, que convencimento! Apolo, quando nasce, é para todos. Talvez nisso - como em tudo - tenham visto os Gregos mais longe, ao aproximarem, na mesma pessoa, o deus do Sol e o deus da Arte. Mas, hoje, Apolo, do seu carro, olha - e não encontra a lira. Se a Arte é de todos, onde estão «os todos» para a reclamarem? Em vez disso, «os todos», como prisioneiros da caverna da alegoria, festejam com as sombras - mas, lá fora!, o Sol! O Público contenta-se com falsificações, quando os quadros de Munch foram roubados - mas O Grito e a Madonna foram recuperados!

As massas galvanizam-se com fantasmas, quando, ao lado, na tumba, os falecidos só esperam o seu olhar para ressuscitar ao terceiro dia! Olho em volta - e entristeço-me profundamente, dando vontade de reconstruir o mundo como os «sábios» da Academia de Gulliver. Entra-se numa livraria, mas onde foge a almada exclamação de Almada!:"Deve haver certamente outra maneira de se salvar uma pessoa, senão estarei perdido." Hoje, a perdição é, amigo Almada!, a tua outrora salvação! Hoje, quando a sibila me quer mostrar, Eneias, o Inferno, leva-me a uma livraria. Tanta coisa sem jeito que pulula ali e que esforço, Deus que esforço!, para encontrar algo bom que não seja, vinho do porto, velho. E quando encontro, Deus encontro!, encontro, como quem encontra um amigo, por acaso, quando sai do café mas já soubesse antes que no café estava o presidente. Oh Almada!, nem imaginas a publicidade desalmada que fazem a tanta porcaria ambulante para que a comprem! Mas são os nomes delas que discutem na rua, como quando saíram As Minas de Salomão do Eça. (não sei se percebeste a ironia do contraste). Todos sabem os nomes delas, como todos sabem o nome do presidente, mas, ai!, quem conhece o meu amigo senão eu? Houve um tempo, Almada, em que as pessoas tinham alma e tinham amigos...

Entro no carro. "Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,/Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,/Sozinho guio, guio quase devagar", ó Álvaro!, e, para saborear toda a modernidade de um só trago, ligo a telefonia. Mas Álvaro, preferia os intonarumori, os «instrumentos» de fazer barulho do teu futurismo! Isto é invariavelmente igual: baçamente distingo. Na rádio, imagina Álvaro!, passam plagiadores de músicas japonesas! E sabes o mais cómico nisto tudo? As pessoas gostam, as pessoas gostam [risos]! Já ninguém tem paciência para triunfalmente escutar os ruídos das fábricas: mas, compensatoriamente, taylorizaram a música. Agora, é como uma receita de uma papa de velha no Pantagruel. Tal como a Fanta, as canções hoje só têm 8% de música, e esta à base de concentrado! O mais compõe-se de vitais elementos: 1º a luxúria de uma mulher ("uma mulher bela que não se ama,/Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.") (ou, no caso masculino, uma metrossexualidade); 2º coreografias (a Madonna concebeu o cristo - e quando nasceu, veio crucificado); 3º computadores (sonhasses, Álvaro!, que um dia viria que a música seria sem instrumentos e sem músicos!). Depois - seguindo a receita, há o forno para o pão. Porque o pão é uma massa de farinha ensopada. É, revelação!, o forno que faz o pão, o fenómeno, o sucesso. O forno chama-se MTV e rádios. No teu tempo, Álvaro, eles lá na telefonia, quando era chegado o horário, tinham um locutor que criava ali, disco-jóquei, algo maior que ele sendo dele. Escolhia as músicas para mostrar e havia quem preferisse, pelos gostos musicais obviamente embutidos nos programas, mais um que outro. Hoje, Álvaro, os locutores chegam à hipocrisia de nem gostarem das músicas que estão a rodar. Vontadas de dinheiro, as editoras asseguram, como quem paga uma publicidade, um número fixo de audições diárias. Num tempo de cabalas, eu creio numa: aquele programa de fim de tarde, que eles chamam discos pedidos, deve também estar todo comprado e quem liga para lá são os empregados das grandes marcas discográficas, intermediárias impingidas dos cantores (nota, Álvaro, hoje já não falamos de músicos, mas de cantores!). Houve um tempo em que os músicos acreditaram no DIY. Sabes?, perdeu-se toda a liberdade. O mundo mudou tanto desde o ano da morte de Ricardo Reis!

Chego a casa. Tiro o casaco, abro o maço que poiso depois de acender um cigarro na cómoda do hall de entrada. Ligo a TV e estendo o braço e compro um comando. Nada. Um vazio. Até a casa está mais cheia, porque me tem a mim. «Produções nacionais» - nome tão alto para o tão baixo! - sucedem-se dinasticamente segundo o molde egípcio de casamentos entre irmãos. O resultado: faraós geneticamente deficientes! Há um ar mongolodita em tudo isto. Desligo a televisão e o cigarro. Monto ao cinema. Olho os cartazes. Raios de não viver em Lisboa! Aqui, o último cinema independente - chamava-se Avenida, o indigente! - fechou no mês passado. Há um semestre abriram, do outro lado do rio, mais seis salas. Deixá-las! Tiro do bolso da gabardina o bocado amuchucado de jornal do dia da página dos cinemas: três filmes de miúdos sem imaginação e quatro blockbusters de verão. E estar a acontecer o Festival de Veneza ao mesmo tempo! E a censura?, a censura! Tenho em casa um dossiê com os obituários pela MPAA. "Weitz stated that New Line Cinema feared that "perceived antireligiosity" would make the film financially unviable in the US." Deus, isto faz algum sentido? Houve um tempo - creio que houve - em que ser artista era um bando de enfants terribles. Hoje, quando vão aos Óscares, vestem-se de gravata.

Isto são as sombras. Mas há, o afirmámos, Apolo. Imputar, na alegoria da caverna, a culpa inteira e pura à fogueira, só porque ela faz as sombras, é negar que há cadeados a prender as mãos dos seus habitantes. Não há, hoje, senão nos que ainda não cresceram (e mesmo esses crescem já hoje tão depressa!), a liberdade suficiente para admitir e aceitar a Arte verdadeira. "You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inert, so hopelessly dependant on the system, that they will fight to protect it.", ensina-nos Morpheus. Pouco há, de facto, a fazer com essas pessoas que matarão o filósofo quando ele, visto o Sol, regressar à caverna platónica. Precisamos de uma nova geração - e nisto temos a vantagem de sermos jovens.

M.L.K. - Manifesto Liberdade e Kultura [Parte I]

A.S.: a escrita deste texto foi feita em várias partes, umas longas, outras breves, em dias juntos ou separados, em horas diferentes, na diferença toda que pode comportar o espírito. O texto resulta pois como uma enorme manta de retalhos de estilos - se isso lhe traz riqueza ou o ilide, o juiz - leitor! - decide.


Folheava hoje as páginas virtuais, leitura matutina do jornal novo em que se converteu, sem baptismo, a máquina em que escrevo. Nas informações que pesquisava da adaptação cinematográfica do primeiro volume da trilogia His Dark Materials, encontrei na Wikipedia:

"In an interview published on the internet in December 2004, Weitz indicated that the film would make no direct mention of religion or of God; two of the key themes of the trilogy - a decision attacked by fans of the novels. Weitz stated that New Line Cinema feared that "perceived antireligiosity" would make the film financially unviable in the US."

Este é o Tempo em que Arte diminui.

No séc.XX nasceu matarem-se as regras. A libertação libertou-se do que libertar-se. Dadá destruiu toda a seriedade da Arte, e os os russos acabaram com as palavras na literatura (Khlebnikov) e os objectos na pintura (Kandinsky). O Romantismo, enquanto movimento espartaquista, concluiu-se enfim, porque se concretizou finalmente. Na América, houve Greenwich Village. Ah!, esses, esses foram tempos em que o tempo não contava na atemporalidade de que as obras imortais eram cheias! Homens forjaram o quebrar das correntes e ser artista era sinónimo de ser livre! Livre da sociedade, livre da própria arte. Todos eram futuristas, ordenando os incêndios de tudo o que pertencia ao passado, e a inauguração de um tempo novo com a regra nova de não existirem regras. A Arte: acontecia.

"Todo o mundo é composto de mudança".

Hoje, o mundo engravidou de mais um século. Mas, ai Darwin!, estavas errado! Mais tempo não significou mais evolução. Os sinais são demais evidentes: a Arte foi taylorizada. Garrett escreveu nas suas Viagens a receita para uma novela romântica - hoje, tudo tem as suas regras, como se todos tivéssemos saídos de uma gigantesca academia de Belas Artes, chamada cultura pop. A rádio comprime as músicas a quatro minutos, talvez por o quadrado ser para os gregos a forma perfeita. As editoras literárias, canas de bambu, bamboleiam à boleia das tendências (vide Cruzadas Literárias, onde se distingue o bom do mau fruto). O cinema prostitui-se por um PG13. Estamos a ceder a Arte às massas - e a Arte nunca foi uma questão de massas. Não que os dois temas sejam antagónicos - e virá, assim creio, o dia em que, pelo contrário, serão sinónimos - mas tal sucederá não porque a Arte se baixou, mas porque o Público se elevou. Porém, repito, a Arte nunca foi uma questão de massas - porque é um produto, essencialmente, individual.

Enquanto exposição de uma filosofia, de uma mundividência, de uma mensagem, qualque obra de arte torna-se imensamente pessoal, e, quando é verdadeiramente genial, consegue atingir a universalidade. Anna Karenina é uma obra de Tolstoi, com as ideias de Tolstoi - mas capta o fundo do ser humano e, aí, ganha o coração de cada leitor e a essência difícil da psique humana. É desta extrema duplicidade paradoxal - de ser simultaneamente a expressão e a expansão de um «eu» e a possibilidade de identificação anónima com o Homem - que Nietzsche fala num passo da sua Origem da Tragédia: "...pois este «eu» não é já o do homem vigilante, o do homem empírico e real, mas sim o «sujeito» verdadeiro e eterno que existe no fundo de todas as coisas e que o génio lírico sabe reproduzir, penetrando assim até ao íntimo cerne da realidade."

A verdadeira Arte significa, pois, algo para as pessoas. Fala-se, por exemplo, em confirmação do «paradoxo» de cima, de cinema de autor de massas, das mãos de Hitchcock, Tarantino, Kubrick ou Spielberg. A Arte é Humanidade e condição essencial, como a Filosofia ou a Ciência, da nossa realização humana. Por isso, a Arte tem Público. Eu não acredito na estupidez das pessoas: eu acredito na sua estupidificação. Se a Arte tem de se livre, não menos livre tem de ser quem se dispõe a acolher essa Arte. E, Deus!, é isso que nos falta! Espíritos livres e espíritos presos que se queiram libertar! Entre o artista e o consumidor surgiu esta figura, exôtica, estranha, condicionante: o editor/o produtor. Nunca houve tanta oferta e nunca a cultura foi tão monólita. Este é o tempo dos media - «media» porque intermediários. E, porque intermediários, eles filtram a produção artística, condicionando o sucesso ou insucesso dos projectos criativos. Vivemos o tempo da Arte fabricada: o sucesso artístico é um fenómeno independente do artista. O sucesso da generalidade dos cantores de hoje em nada se deve aos seus talentos, mas à MTV; o triunfo de filmes de acção repetidos e comédias românticas adolescentes, ao marketing; as vendas de inúmeros autores, a irem às cavalitas de um género que obtém um breakthrough. Goethe escreveu na opus Fausto:"Que a sorte sem mérito pouco vale/Um tolo nunca o entenderia;/Tivesse ele a pedra filosofal/E inda o filósofo à pedra faltaria."

quinta-feira, julho 20, 2006

A Antígona Discográfica

Um pequeno manifesto humorístico a favor do download de músicas que me mostraram recentemente levou-me a reflectir de novo na legitimidade ou não do acto. Note-se que não me questiono aqui a um nível jurídico - para além de não ter os conhecimentos a isso necessários, é-me de todo irrelevante. Questiono antes a um nível moral, tanto mais que esta é um problema que, a nós, artistas (ainda que os membros deste blogue não se movam exactamente no mesmo campo que aqueles a quem este artigo maioritariamente se refere), nos preocupa, por maioria de razão.
As editoras discográficas argumentam que a prática do download lesa pesadamente os artistas. Até que ponto é esta afirmação verdadeira? Até que ponto não são as próprias editoras que usam aqui os artistas como escudo humano, como bode expiatório salvador (guarde-se o paradoxo)? Pouca é, na realidade, a percentagem de lucros que o artista recebe - muito mais o músico ganha (e daí vem a sua riqueza e sustento) com os concertos. Ora, a própria classe de músicos reconhece unanimemente que a internet (aqui como sinédoque do download) faz mais pela sua divulgação do que qualquer outro meio - logo, mais fãs afluem aos concertos, ergo, mais dinheiro entra directamente para os fundos dos artistas.
A verdade é que comprar um CD é um acto arriscado, caso já não se tenha uma relação de confiança com a banda. Não se trata do custo do CD em si ser particularmente elevado - o que, no entanto, é facto para as carteiras normais dos concumidores-alvo: os adolescentes e jovens adultos. (Apesar destes preços, somos forçados a concordar quando as editoras afirmam que é um preço baixo para um investimento para toda a vida e que podemos reouvir vezes inúmeras). Porém, ninguém se arrisca a comprar um álbum dum artista que desconhece, correndo o risco de fazer um investimento errado - daí preferirem, tantas vezes, tirar da rede e, depois, compram os novos álbuns do artista - porque, não nos iludamos: imensos consumidores compram mais CDs porque começaram a tirar música da rede e a conhecer artistas, do que se não o fizessem - simplesmente compram-nos, muitas mais vezes, em promoções ou feiras do disco.
A indústia cinematográfica é, no ponto específico do desconhecimento do produto, bem superior, devido à sua rede de cinemas: conseguimos, por um preço diminuto, ver o filme antes de ele sair em DVD, permitindo-nos assim, mediante a nossa reacção pessoal ao seu visionamento, optar por, posteriormente, o comprar ou não - porque já o vimos, por um custo baixo. Porém, isso é impossível na indústria discográfica - e não, não bastam os singles: quantos one-hit-artists não existem? A criação de postos ou dum qualquer serviço onde fosse possível, como cinema-musical, antecipadamente, ouvir os discos, por um preço reduzido, um musicoclube, se quisessem, poderia favorecer a compra directa de CDs.
Podem-me dizer que esta argumentação cai por terra tendo em conta que quando se saca música é simplesmente para não gastar dinheiro - não é com a intenção de, posteriormente, se agradar, comprar. É preciso tomar em conta que o bom fã vai-se esforçar por ter o álbum original, regra geral - e que poucas são as pessoas que, de facto, não compram qualquer CD ou não têm originais, ou porque neles investiram, ou porque lhos ofereceram nos anos ou outras festividades. E se quem sacar tiver alguma consciência, investirá nos pequenos artistas, aqueles precisamente mais necessitados.
Ou seja, podemos identificar um conjunto de problemas que, em parte, garantem a legitimidade moral daquele que descarrega músicas da net, conquanto o faça com consciência e sem, por exemplo, objectivo de posteriormente as comercializar no mercado negro. Assim, Antígonas, ignoramos o regulamento de Creonte das editoras, não obstante o castigo - e não nos importamos.

sábado, julho 15, 2006

Prometeu & Lúcifer

O presente texto é uma reformulação parcial de um que originalmente escrevi, de rompante, no meu próprio blogue - tal circunstância julgo explicar alguma fogosidade e informalidade que se despreende das palavras. Porque brotou de uma corrente de pensamentos, alguns corrige e emenda à medida que se desenvolve. Para o Ars Scientia limei algumas arestas, de raciocínio e gramática: aceitam-se, bem desejadas, críticas.
Cita Nietzsche Goethe, a sua obra Prometeu:
Sentado aqui, eis que modelo homens
À minha imagem
Uma raça que me seja comparável,
Para sofrer e chorar,
Para gozar e jubilar,
E para não te venerar,
Como eu!
Eis que, em lendo, na aula, estas palavras, tudo, como iluminação, se me revelou - como eu mesmo, prometeu, roubara o fogo que algum deus olímpico escondera: uma série de encadeamentos de conceitos e noções, até à associação final da imagem.

Nestes versos do Poeta, aparece-nos um Prometeu que, primeiramente, se caracteriza pela revolta; segundo, pelo acto demiúrgico; terceiro, a ideia do sofrimento. Ante isto, é impossível não ocorrer à mente, correndo, a ideia de Lucífer. Lúcifer é, pela tradição, o anjo caído, que se revolta contra Deus, que resvala, ele mesmo, para o sofrimento (por isso - interpretando o poema citado - cria também os seres humanos "para sofrer", "à minha [sua] imagem") derivado da separação de Deus e do Uno Primordial (não se leia o termo nietzschianamente) - hoje em dia, na própria teologia cristã, o Inferno é indicado já não como um local, mas sim como o estado de separação do sujeito de Deus: exactamente a circunstância luciferina. Note-se, mais aterrador, a semelhança entre Lúcifer, literalmente, o que leva a luz (lux[luz]+ferre[levar, transportar]), e Prometeu, que roubou a luz (o fogo). A própria linguagem nos parece claramente indicar uma estranha ligação entre as duas personagens.

Naturalmente, o imaginário cristão jamais poderia comportar a ideia de uma criação não divina, mas diabólica, isto é, que tudo o que existe não tenha sido criado por Deus, como afirma o Génesis. As primeiríssimas heresias cristãs, que afirmavam a matéria como mal, pareciam defender, implicita ou inconscientemente, que, a matéria, enquanto algo de claramente negativo, não podia ter a origem num ser bondoso, Deus, mas num deus menor, num demiurgo, num diabo, que, malvado, criara a matéria malvada. Não existia forma de compatibilizar as ideias, contraditórias, de Deus como criador de tudo e da matéria como algo negativo, mau. Obviamente, para suprir este dilema, o cristianismo ultrapassou esta dialéctica platónica que parece ter sido seu apanágio durante a Idade Média.

Obviamente, aquando do aparecimento da figura de Prometeu na mitologia grega este dualismo platónico estava totalmente ausente, pelo que a criação do homem em matéria (e espírito: recordemos, de novo, que não se falava ainda no maniqueísmo que Platão mais tarde introduziria ao falar de um Hiperurano onde os seres humanos existem somente enquanto almas) não é considerado um acto mau, nem, note-se, ainda sequer um acto de rebaldia (como o pretende fazer Goethe). De acordo com o mito, Prometeu e o seu irmão titã criaram os seres vivos (Prometeu somente o Homem, sozinho) sob autorização de Zeus, para povoarem a terra. Nem, sequer, podemos declamar o verso de Goethe "E para te não venerar", já que, diz a tradição mítica helénica, foi Prometeu que ensinou aos homens o dever do sacrifício para com os deuses e das libações que lhes deviam. Sabendo nós que Goethe não era, de forma alguma, um ignorante nestas matérias clássicas, só podemos entender o por ele escrito como uma deliberada tentativa de associação da figura de Prometeu à de Lúcifer, no conceito de um caído e rebelado, e mesmo à ideia do Demiurgo, no sentido em que Prometeu cria.

Se o termo demiurgo contém uma carga negativa latente, um desprezo óbvio, quer por parte de Platão quer por parte dos gnósticos, que dele bebem, ele aqui surge totalmente retransfigurado, no cimo do monte tabor, ladeado do seu elias e do seu moisés: e nós, na sua contemplação, pedros, contruamos três tendas. Aqui o desprezível Demiurgo torna-se no resplendoroso Prometeu. O acto criador do velho Demiurgo, antes ele e o seu acto achados baixos, menores e maus, são agora subidos a toda uma nova categoria quando abandonamos essa terminologia satírica para com eles para falarmos da imagem helénica de Prometeu. Quem olha desprezivelmente para Prometeu? Ele é o deus menor ainda, nem deus é, é titã, o grosseiro titã, comentarão os deus olímpicos dos seus tronos de esmeraldas, mas ele é, a nós, homens, seus filhos, o pai, o criador: ele nos deu plena existência. Não achamos mais um deus menor que emprisionou os nossos espíritos, antes livres no etéreo, na matéria, achamos sim, há semelhança do Deus cristão, um criador que nos cria, pela primeira vez, inteiros, matéria e espírito (anima, em latim, aquilo que anima, ou seja, dá vida, literalmente).

Assim, Goethe opera esse milagre, naqueles versos citados por Nietzsche, de fundir, simultaneamente, as figuras de Lúcifer (no sentido da revolta) e Deus (no sentido da criação), nesse híbrido que é Prometeu. Prometeu, desde o início, elevou os homens à condição de Deus, dando-lhes o saber (do qual o fogo, em última análise, mais não é que, enquanto luz (Iluminismo), uma metáfora), o que incendiu tanto a ira de Zeus. Aqui, vemos, obviamente paralelismos bíblicos, com a Árvore do Conhecimento que Deus proibiu Eva e Adão de comerem. Mas a Serpente-Lúcifer-Prometeu dá a maçã aos homens, trazendo-lhes o conhecimento, o qual, inevitavelmente, traz sofrimento, quer ao tentador, quer aos tentados. É isso que nos diz não só o relato do Génesis, mas também o mito grego, quando, por um lado, Prometeu é agrilhoado no Cáucaso, por outro, Pandora desce à terra com os males do mundo e os liberta, punindo a nossa raça. Uma outra vez, reforça-se a ligação Lúcifer-Prometeu.

Parecemos ter aqui a confirmação da sabedoria profunda de Nietzsche, que escrevia, pouco antes de citar estes versos, "aquele que decifrar o enigma da natureza [...] há-de [...] violar as sagradas leis da moral." ou ainda "lança da sabedoria volta-se contra o sábio: a sabedoria é um crime contra a natureza". A inconsciência, no sentido de não saber, seria o estado primitivo (por isso Uno Primordial) de Eva e Adão (em metáfora de todos os homens) até Lúcifer-Prometeu os tentar. É deste Uno Primordial em que tudo é paz, porque inconsciência ("Ignorance is bliss" - Cypher, Matrix) (que é a ingenuidade, a tão louvada ingenuidade, mais do que um não saber?), que Lúcifer-Prometeu quer arrancar os homens. Diz o mito que Zeus não concordava com o que Prometeu fazia aos homens, que ele [Prometeu] via como superiores a todos os restantes animais, achando [Zeus] que os homens deviam ser semelhantes às bestas. A sabedoria surge como uma ofensa aos deuses. Na ignorância se moviam a pré-Pirra e o pré-Deucalião (sem nomes na lenda) até Lúcifer-Prometeu lhes dar a luz (fogo), ele que, é, por Lúcifer, o que leva a luz, por Prometeu, o que vê mais longe. Note-se, na etimologia de Prometeu, o verbo ver: saber é ver, ver implica, enquanto fenómeno físico, necessariamente, a luz. Esta é a sabedoria maior, a de o ver longe, ou profecia. Pela profecia, Prometeu foi salvo: Zeus não podia dispensar saber quem seria aquele que o destronaria: preso ao poder, prendeu à rocha aquele que doutro modo mataria. Prometeu ensinou os homens, diz o mito, a estudar os astros e sabemos como nesse tempo que era o da Antiguidade, astronomia era equivalente de astrologia, e que outro intuito tem esta senão conhecer o que está para vir?

Se a sabedoria é, como vimos, uma ameça aos deuses, como não o pode ser mais a profecia, o conhecimento do próprio destino? Os seres humanos humanos ameaçavam saber tanto como os deuses, ser tão poderosos como os deuses - e, então, que poder teriam os deuses? Obviamente, entende-se a preocupação destes. Os deuses constituem-se assim como uma espécie que existe apenas em função da conservação e execução do poder. (Um comunista podia ler aqui uma bela metáfora contra o capitalismo - pobres gregos que não sonhavem estes marxistas aproveitamentos!). O que Prometeu vem, proletário revolucionário, fazer é incentivar os homens a rebelarem-se, à semelhança de como ele se rebelou contra Zeus. Rebelado, ele pode ser mais infeliz, mais miserável, porque perdeu a benesse da paz e felicidade primordiais, que só se atingem na inconsciência, no nirvana budista, mas, em contrapartida, tornou-se livre, e a sua liberdade conquistada, não a cede por nada. Fora da mansão do seu senhor, o escravo não tem o pão que, todos os dias, o mestre lhe assegurava na mesa, não tem a água pura que o dominador lhe servia, mas é livre! E a única coisa pela qual pode ceder a sua liberdade (que antes dissémos não ceder jamais) é pela concessão de liberdade aos outros. Assim se entende que Prometeu, aquele que prevê, porque prevê, sabendo, a priori, do seu castigo, tenha, mesmo assim, roubado o fogo: a única coisa pela qual a liberdade é passível de ser cedida é pela própria liberdade. E, pelo fogo, Prometeu concretizou a libertação dos humanos dos deuses. Prometeu, foi, num certo sentido, o primeiro anarquista. Dizia Bakunine que "Se Deus existisse realmente, seria necessário fazê-lo desaparecer". Prometeu e Bakunine partilham a visão de um Deus que apenas procura preservar o seu poder (o que, implica, necessariamente, alguém que se submeta a esse mesmo poder e pelo qual esse poder se possa exprimir, em lhe [ao poder] obedecendo). Ante esta escravatura, os dois apelam à libertação do homem. Lúcifer, esse, procura libertar o ser humano da prisão da sua ignorância, que é inclusive a ignorância da sua prisão.

Algo, porém, ao leitor atento, parece falhar neste edifício. E, ai!, que até a mim me intrigava! Mas, como quando se escreve, tudo se desentreva, assim, em quanto me explanava em buscas de sentidos, achei-o. Sim, certo, o mito é claro nesse aspecto: depois de roubar o fogo do Olimpo, do carro de Hélio, Prometeu aconselhou os homens, que faziam fogueiras para aquecerem os alimentos e os corpos, a, para aplacar a ira de Zeus que ele previa, que lhe oferecessem um sacríficio (aqui a introdução do sacrifício, antes mencionada e atribuída ao titã). Para isso, matou-se um boi. Mas, eis companheiros, "brothers, your humble narrator" acercou-se da lenda e entendeu, enfim, o seu pormenor que não deslindava. Concentremo-nos no futuro do boi. Prometeu didiviu os restos do boi em duas partes, que envolveu em pele. A porção maior continha apenas gordura e ossos; a mais pequena repletava-se de boa carne. (há outras versões do mito, que o narram diferentemente, mas, tratam-se de pormenores ou divergências que, na medida das várias versões por nós conhecidas, em nada afectam as conclusões tiradas antes). Prometeu, ante Zeus, disse ter reservado a menor para os deuses, mas o pai do Olimpo indignou-se. Matreiro, como um Loki nórdico, Prometeu deixou, com um sorriso, Zeus escolher que porção queria e, obviamente, o guloso escolheu a maior - só para perceber como fora ludibriado. Note-se, pois, que Prometeu tudo isto fez para enganar os deuses - há aqui um sarcasmo, um desprezo. Ele introduziu o sacrifício, concordo: mas com o único intuito de ridicularizar Zeus. Por isso, o próprio sacrifício, na forma em que Prometeu o introduz, tornar-se um acto de revolta contra os deuses, não de subserviência. Goethe escrevia afinal bem quando nos deixou o verso "E para te não venerar, /Como eu!".

Uma última questão prende-se com a criação dos seres humanos por Prometeu-Lucífer, apenas aflorada anteriormente. Lúcifer é aqui equiparado ao Demiurgo gnóstico só no sentido em que, não sendo o verdadeiro Deus, é um criador também. Segundo um os Três Livros de Enoque, bisavô de Moisés, (estes livros, não pertencendo ao cânon, foram citados e reconhecidos como inspirados por vários Pais da Igreja), Deus escolhera um grupo de anjos específicos (os quais, posteriormente, cairiam) para auxiliar na construção do Éden. A narrativa descreve como se apaixonaram pelas mulheres e lhes geraram prole, razão pela qual, segundo o autor teriam sido expulsos. Esta visão que muitos tardariam a qualificar de apócrifa está, na realidade, bastante bem documentada no Génesis. Passamos a citar o início do sexto capítulo do primeiro do Pentateuco: "Quando a humanidade começou a ser mais numerosa na terra e foram nascendo mais raparigas, os seres celestes viram que estas eram belas e cada um deles escolheu para sua mulher aquela que mais lhe agradou. [...] Havia então na terra os gigantes e continuaram depois a existir. É que os seres celestes tinham casado com as filhas dos homens e tinham gerado filhos. Foram estes os famosos heróis dos tempos antigos." (Gn, 6, 1-4). Porém, não nos interessa especificamente este relato e só o transcrevi para maior credibilidade dar aos Três Livros de Enoque. O que estes nos revelam de importante é a intervenção directa dos anjos na criação do mundo. O texto, obviamente, não assume a possibilidade que não tenha sido Deus a criar a raça humana, mas involve directamente os caídos na feitura do mundo. Também Prometeu, como referido, cria os homens sob ordens de Zeus (ainda que este solicitasse apenas criaturas, sem especificar, para popular a terra). Se estamos perante um anjo-titã que se revolta contra a autoridade, como entender este acatamento de ordens da mesma autoridade? A tradição (do mito e do cristianismo) remete, frequentemente, a queda para depois da criação do ser humano, pelo que, sem embargo, podemos reconhecer Prometeu coerente, o mesmo Prometeu que, anteriormente, se associara mesmo a Zeus para destronar os outros titãs. Contudo, se tudo isto aqui explanamos, é numa tentativa de remeter sentido ao verso "eis que modelo homens", na tentativa de ligar mais prontamente Prometeu e Lúcifer. Para tal, tínhamos antes feito equivaler Lúcifer, na coisa de criar, ao Demiurgo gnóstico. Porém, a ligação das duas imagens que fazemos é relativamente vaga, pelo que seria mais acertado o associarmos ao binómio gnóstico Sophia/Demiurgo, que sabemos [este último] ser uma emanação de Sophia, a qual, por sua vez, era a emanação mais fraca de Deus. Lúcifer comporta esta dupla divindade: é Sophia enquanto portador de sabedoria, e é Demiurgo enquanto criador do mundo. Porém, não nos coibimos de concordar que é forçado unir, neste ponto específico, as imagens de Prometeu e Lúcifer, se não concedermos em não aceitar a versão de Goethe e do mito na sua versão mais conhecida, de que Prometeu criou, de facto, os seres humanos. Porém, ainda que este assunto seja portador de grande relevância, se aqui o tratamos foi por razões de honestidade e clarificação. Ele, na teologia nova do saber que aqui abordamos, no âmbito só em que Nietzsche a usa, mantém, independentemente da sua resolução correcta, inalteráveis e válidas as assumpções anteriormente feitas em matéria de conhecimento (fogo/luz) trazido pelo Prometeu-Lúcifer.

Estamos aptos a sintetizar então toda uma teologia alternativa: no começo, era o que chamámos de Uno Primordial: um descanso pacífico infinito de Deus/Zeus e das Suas criações. Nele, uma dessas criações (Prometeu-Lúcifer) revolta-se, ao despertar desse Uno Primordial, entendendo, enquanto criação, o seu estado de submissão ao poder instituído (Deus/Zeus). [?Cria as suas próprias criaturas: e, nesse, e apenas nesse, sentido de que cria sem que que seja a Entidade Máxima, é demiurgo.?] Aos homens ensina. Os deuses (Deus/Zeus) reagem negativamente à escalada de conhecimentos das criaturas que antes, no Uno Primordial, porque ignorantes, se lhes submetiam, sendo felizes. Com o conhecimento dissolve-se a ignorância, com ela a subserviência. Os homens escalam ao estatuto de deuses e dispensam-nos, gozando das libações que lhes prestam. Como castigo, o seu libertador (Prometeu-Lúcifer) é condenado, bem como eles mesmos. Os poderes (Deus/Zeus) surgem, pois, como vingativos, sendentos de poder, e Prometeu-Lúcifer como o salvador da Liberdade pela Sabedoria: a gnose, com a ascenção à condição igual dos deuses, e a queda necessária de belerofonte que isso implica.